sábado, 5 de novembro de 2011

Traquinagem de criança




             
“A maior aventura de um ser humano é viajar,
E a maior viagem que alguém pode empreender
É para dentro de si mesmo”.
(Augusto Cury)

            Certamente o maior privilégio do ser humano é poder navegar em suas lembranças, como se viajasse no túnel do tempo, trazendo das profundezas do subconsciente, fatos vividos, experienciados ou presenciados por toda a sua trajetória de vida.
            Muitas vezes na calada da noite, quando o sono demora a chegar, cenas de minha infância e adolescência desfilam pela minha mente, tão nítidas que até parecem ter acontecidas ontem, no entanto, lá se vão quase meio século.
 Um dos episódios de que sempre me lembro e que marcou minha vida, foi o do dia em que meu irmão Neno, pôs fogo na nossa casa.
            Era manhã de primavera. Após uma noite chuvosa, com fortes ventos e raios assustadores que duraram quase toda a madrugada, o sol surgia por trás da gigantesca figueira que demarcava, do lado leste, o limite de nosso sítio com o sítio vizinho. Com seus raios de um esplendor tão intenso, como sempre acontece após a chuva que lava toda a poeira do ar e o resto do cinzento deixado pelo inverno. O cheiro da terra roxa molhada, misturado com o perfume dos eucaliptos que havia nas proximidades da nossa casa, extasiava o meu ser de inocente criança.
            Minha mãe, naquela época, só havia posto ao mundo a metade da sua prole. Eu, a terceira filha de meus pais, contava com apenas cinco anos de idade. Malia, minha irmã mais velha, já havia ido à escola na pequena cidade de Pitangueiras, a dois quilômetros de distância do nosso sítio. Lala, minha irmã um ano mais velha que eu, estava escondida atrás da casa, chorando, após ter levado umas chineladas de minha mãe, por ter novamente feito xixi na cama. Rara era a noite que não molhava o colchão. Lembro-me muito bem desta cena. A juventude corria pelas veias de minha querida mãe, que naquela manhã, madrugara como de costume, e ainda com a claridade da lamparina a querosene, já havia ajudado meu pai a ordenhar as vacas, preparado o leite para o queijo que fazia todos os dias para o nosso consumo e aprontado minha irmã mais velha para a escola.  Ela saiu à janela, espiou o céu de um azul tão profundo, viu que não ia mais chover. Então resolveu lavar os forros dos colchões das crianças, que naquele tempo, os de molas ou espumas eram para poucos, eram considerados artigos de luxo. Os nossos eram costurados por ela mesma e enchidos com palhas secas de milho, desfiadas e limpas. Frequentemente minha mãe fazia essa tarefa, pois, também naquela época, não podia contar com o conforto das fraldas  impermeáveis e descartáveis de hoje.
            Após descosturar um dos lados do colchão, despejou as palhas em um canto do quarto e saiu à porta da cozinha para lavá-lo. Pouco tempo depois, Neno, meu irmão um ano mais novo que eu, garoto esperto e traquina, igual, acho que nunca ninguém viu, pois enquanto estivesse acordado, estava ele fazendo traquinagens. Ao ver o monte de palhas, imediatamente sua cabecinha começou a funcionar. E como funcionava!  Sem ser visto, pegou uma caixa de fósforos de cima do fogão à lenha, entrou quietinho no quarto. Riscou um, dois, três palitos. Na sua pequenez, ainda não tinha forças suficientes para acender os fósforos. Tentou mais um pouco e conseguiu. Pouco a pouco o fogo se espalhou na palha seca e foi ganhando altura. Assustado, saiu correndo, olhos arregalados como sempre ficava quando acabava de praticar alguma travessura. Foi até onde estava nossa mãe, que tirava água do poço movido à bomba e falou:
            _ Mãe, tem fogo na “paia”!
            Minha mãe de início não entendera aquelas palavras quase sussurradas. Segundos depois, sentiu o cheiro de alguma coisa queimando, olhou para dentro de casa, viu fumaça saindo pela porta da cozinha. Imediatamente largou de bombear o poço, saiu em desespero casa a dentro. Correu ao quarto. O fogo atingia a cama e línguas de fogo lambiam a cumeeira do quarto. Lembrou-se do bebê que dormia no quarto ao lado. Desesperada e aos gritos, tomou a pequena Leo nos braços, arrastou a Cinda para fora e  pediu que eu e a Lala, que nesta hora já parara a sua manha, cuidássemos das pequenas. Minha mãe lutava como uma leoa, sozinha para vencer o fogo. Nós éramos muito pequenos ainda e meu pai  estava na lavoura de café.  Já sem forças de tanto bombear a velha bomba d’água, da qual corria apenas um filete de água, viu que não conseguiria dominar o fogo. Desesperada, elevou as mãos para o céu e implorou à Virgem Senhora Aparecida que lhe desse forças e a ajudasse a vencer o fogo. Foi então que lhe veio à mente como que em resposta as suas preces, abafar o fogo com tachos, bacias e outros objetos pesados e não combustíveis. Assim ela conseguiu dominar o fogo.  Nós, amedrontados, uma mistura de choro, pavor e curiosidade, fomos adentrando a casa. Chegamos à porta do quarto, vimos os móveis  chamuscados em alguns pontos e as paredes enegrecidas pela fumaça, não mais que isso. Das palhas só sobraram cinzas. Minha mãe ainda toda trêmula, sem forças, sentou-se na escada da porta da cozinha, abaixou a cabeça entre os joelhos e chorou.
            Foi a primeira vez que vi minha mãe chorando, também foi a primeira e única vez que a vi toda descabelada, rosto sujo de fuligem. Ela havia perdido seu lenço de cabeça com o corre-corre. Eu não sabia o que fazer, era muito criança, todavia, não queria ver a minha mãe chorando. Achei o seu lenço caído pelo meio do caminho, fui até ela, depositei-o em seu colo, descansei minha mão em seu ombro e murmurei:
            _ A mãe salvou a nossa casa. Apagou o fogo sozinha!
            Ela enxugou as lágrimas, como que envergonhada por estar chorando, pegou o bebê do colo de Lala, conferiu se todos estávamos bem e perguntou:
            _ Cadê o Neno?
            Ele estava escondido atrás do paiol, provavelmente com medo da surra que ia levar pela traquinagem feita e que realmente levou, assim que meu pai retornou da roça para o almoço, e tão logo mamãe e nós o colocamos a par do fantástico acontecimento.



            Lourdes Aparecida Galhardo Peres.
Setembro/2004.


Observação: Foram utilizados os apelidos no lugar dos nomes de meus irmãos, por se tratar de história real.

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