sábado, 22 de outubro de 2011


O Verme
(Lourdes A. Galhardo Peres)
Ainda fazia escuro quando Severino acordou no velho barraco. Abriu os olhos aos poucos, tateou o travesseiro ao lado, sentiu-o vazio. Só então se lembrara de que Rosa fora embora. Rosa fora embora porque não aguentava mais aquela vida miserável. Era bonita demais para ficar.
            Veio-lhe à boca um gosto ocre e o estômago revirou-se numa ânsia ardente. Os olhos inundados de lágrimas que  teimavam em rolar pela face, mas ele não admitiu: __ homem não chora,  pensou, muito menos por uma ingrata. Apertou-lhe os lábios, mordeu-os com mais força até sentir gosto de sangue. Continuou deitado, alisando o travesseiro vazio. Esperou para ouvir o canto do galo  anunciando a hora costumeira de se levantar. Achou que estava demorando muito. Pouco a pouco foi recuperando os sentidos, então se lembrou que há dois dias fizera do galo o jantar para as crianças.  Levantou-se: sou um homem ou  um verme? Pensou. Catou do chão e enfiou lentamente as velhas calças já muito puídas pela constância do uso. Tateou pelas paredes da cabeceira da cama, até encontrar a camisa que deixara na véspera, pendurada num prego. Vestiu-a. O cheiro de suor misturado ao cheiro de sangue seco do galo causou-lhe náuseas. Lembrou-se novamente da mulher. Agora com tanta raiva que se a encontrasse pela frente seria capaz de matá-la.
            __Ingrata!
            Foi até a cozinha. A pia estava abarrotada de cacarecos de quase três dias sem lavar. Lavou com dificuldade uma caneca e levou-a com água ao fogo para o café da manhã. Enquanto fervia a água, lavou o rosto no tanque de roupas que havia na pórta da cozinha. Chacoalhou  água na boca, duas ou três vezes,  passou as mãos úmidas nos cabelos que há  tempos começaram a  ficar grisalhos. Viu sua imagem refletida num pedaço de espelho, corrompido com as marcas do tempo que mal dava para se ver, fixado na parede acima do tanque que em outros tempos usava para se barbear. Pareceu assustar-se com a própria imagem:
__ Sou um homem  ou um verme?
Entrou, foi coar o café. Não tinha mais pó. Fuçou nas latas do velho guarda-comida a procura de algum chá que Rosa costumava guardar. Nada achou. Praguejou qualquer coisa, desligou o fogo. Enfiou as mãos nos bolsos na esperança de encontrar algum dinheiro.
            __ Que vida, meu Deus!  Quanto tempo estou  sem trabalho? Rosa tinha razão. Ela era bonita demais para ficar aqui nessa miséria. Mas, se ao menos ela tivesse levado as crianças!... Eu tenho que arranjar um trabalho, quem sabe ela volta pra casa... Não, ela não me merece. Ou será eu que não a mereço? Sou um verme.
            Entrou no quarto das crianças, viu os dois meninos que dormiam na inocência de criança, um arrepio percorreu-lhe a espinha, beijou-os de leve,  saiu encostando a porta.
            No horizonte os primeiros raios de sol se mostravam radiantes. Severino pisava a lama do chão, deixada pela chuva do dia anterior e de  quase a noite inteira. Sentiu um arrepio frio quando o barro entrou pelos furos das solas do velho par de sapatos. Caminhava decidido a arranjar algum trabalho. Tinha que melhorar de vida. Parava em tudo quanto era construção, pois a única coisa que sabia fazer era o ofício de servente de pedreiro, todavia, com essa recessão que o país vinha enfrentando, nada conseguia desde o dia em que fora mandado embora da construtora. Já ia para quase dois anos. Mas,  em cada lugar que parava, olhavam-no de alto a baixo como a dizer:
            __ Sai pra lá farrapo de homem, você não aguenta nem com um tijolo, como quer trabalho?
            Saía cabisbaixo. Foi o dia inteiro nessa labuta. Sua barriga roncava de fome. Alguém, por piedade, lhe dera uns trocados. Enfiou a mão no bolso e sentiu as moedas. Uma ramela no canto dos olhos deslizou  pelo rosto misturada às lágrimas. Limpou-as com as costas das mãos __ homem não chora! Murmurou. Entrou no primeiro boteco que viu, pediu cachaça dupla. Uma velha escabelada, os lábios de um vivo carmim, aproximou-se dele cheirando a tabaco e perfume barato. Severino lembrou-se do gostoso cheiro de Rosa e sentiu  nojo da velha. Tomou a cachaça em um só gole. A danada desceu queimando  goela abaixo. Sentiu reconfortado. Pediu mais uma, mais outra e outras. Pouco tempo depois sentiu a vista turvar,  a língua grossa e pastosa.  Saiu  do boteco cambaleando para lá e para cá. As imagens a sua frente eram ora duplas ora retorcidas.
            Foi num desses momentos, ao atravessar a Avenida São João, ouviu um barulho de motor muito próximo. Virou a cabeça para identificar a distância. Tarde demais. Sentiu um forte impacto à atura dos rins. Seu corpo foi atirado a alguns metros, após rodopiar no ar. Ouviu som de sirene, muitas pessoas se acotovelavam  em volta dele. Vários policiais foram chegando. Ouviu um dizer:
__ Esse já era.
Quis gritar que estava vivo. Gritou, gritou, mas ninguém parecia ouvi-lo. Viu  dois homens de branco chegarem com uma espécie de padiola, viraram-no de barriga para cima, sentiu algo quente escorrer por baixo dele. Pensou  ser sangue, porém não sentia dor nenhuma, só uma zonzeira danada. Os dois jogaram-no na padiola e levaram-no até um carro preto. Letras dançavam na lataria do negro furgão, ele identificou como  IML. Seu subconsciente gritava  mais forte:
__ Tirem-me daqui, deixe-me sair. Eu tenho filhos esperando por mim. Onde vocês estão me levando seus idiotas?
De repente sentiu que o colocaram numa espécie de armário. Fecharam a porta, tudo ficou muito escuro. Poucos minutos sentiu um frio intenso, um frio que parecia congelar até a alma. __ Alma? Sou um verme, ainda pensou. Verme não tem alma, ou tem? Uma espécie de torpor invadiu o seu ser, nada mais sentiu.
Não sabe quanto tempo ficara ali. Pouco a pouco, esquisitas sensações vinham-lhe à mente. Não sentia mais frio, no entanto parecia sentir-se  sufocado. Queria gritar, mas a voz não lhe saía. Então pensou: __ Sou um verme!  Não demorou muito tempo,  sentiu vermes entrarem em suas carnes, penetravam em cada poros do seu corpo num frenesi infernal.








2 comentários:

  1. Louuuuuurdes do céu, amei seu texto!!! Fiquei arrepiada além de amar, mas gostei demais mesmo, já baixei pra usar em algumas turmas!! Adoro esses detalhes detalhosos, o tintim por tintim, senti até o mau cheiro daquela casa, parece um filme!!!! KKKkk, e senti uma coisa estranhona quando vi a charge, kkkkk, foi um contraste muito interessante!!!!
    Que legal, parabéns procê!!!!!

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  2. Obrigada, amiga Else, por suas palavras tão lisongeiras.
    Como gostaria de escrever bem!!!
    Mas ainda estou apenas engatinhando, com muitos erros, falhas, porém com muita vontade de ser uma escritora um dia.
    Beijão.

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